quinta-feira, janeiro 11, 2007

Porque é que já nada é como era?

[ Neblina das seis da manhã a furar os pulmões de quem se dirige ao emprego.]

O carro prende-se no trânsito com ele e ela lá dentro. Dirige-se cada um para o seu local de trabalho.Conversam.

Ela - Como fazemos logo? Vens ter comigo para irmos ao jantar da Mariana ou vais lá ter depois? É que eu precisava de ajuda para levar os doces que ela me pediu.

Ele - Não sei ainda. Depois mando-te uma mensagem a dizer.

Ela - Mas a uma hora decente, ok? não deixes para meia hora antes como de costume!

Ele - Tá bem pá! Não me comeces já a chatear a cabeça a esta hora da manhã!

O resto do percurso é feito em silêncio. Ela deixa-o na estação para ele apanhar o combóio e dirige-se para o escritório. Detém-se como habitual no café para engolir uma bica e comprar o jornal e segue.
O dia corre. Para ambos. Ela sai mais cedo.

[Final da tarde. Estamos em Março, os dias estão ligeiramente mais compridos. São 17h30. Uma certa frescura no ar.]

"Ainda tenho de ir fazer os doces e ele não chegou a mandar a mensagem! Este gajo é sempre a mesma treta."
Telefona-lhe:

Ela - Tou? Onde é que tu estás?

[bastante barulho do outro lado da linha]

Ele - Aaann...ainda não saí do armazém! Vou demorar uns 10 minutos, tá? Vá, adeus beijinhos!

Desliga-lhe o telefone sem avisar.

Ela - Tou?! Sérgio? Tou? Este cabrão é impossivel! Não quero saber! Desenmerda-te! Vais de autocarro para casa da Mariana que te fodes!

Ela chega a casa. Contrariada fecha-se na cozinha e prepara os doces que tinha prometido à amiga. Sai de casa duas horas depois com tudo pronto. Dele nem sinal. Telefonema, mensagem, nada!

Ele no bar em frente ao armazém conversa com o companheiro de copos enquanto aprecia a sua mini.

Ele - Épa a Sónia anda com um feitiozinho, vou-te contar! Já não há pachorra, pá! Tá-me sempre a foder o juízo com merdices que não lembram a ninguém. Parece que anda sempre com o TPM!

Companheiro - Então meu! Tu és um mole, o qu'é que queres? Deixas-a fazer e dizer tudo o que quer! Escuta bem aquilo que eu te digo: As gajas manejam-se com pulso firme, se deixas fugir um bocadinho que seja a trela, elas entram em debandada total! E depois é a merda que estás a ver!

Ele - Épa, eu só queria mesmo é que ela deixasse de me chatear. Só isso. A paciência já está mesmo a esgotar. Gostava que ela não me desse tantos problemas. Já viste? Agora anda com a mania de me controlar com o telemóvel! É incrivel! Quando namorávamos não era nada assim! Agora parece uma velha, foda-se!

Companheiro - Então se já tás assim nesse estado porque é que não a largas de vez? Pede o divórcio pá! Livra-te da gaja!

Ele - Não. O problema maior é que nem isso consigo fazer. É fodido um gajo ficar assim entre a espada e a parede.


[Está já bastante escuro. Estamos por volta das 19h30/20h00.]


Entretanto do outro lado do rio Ela acelera até casa da amiga. De repento, vindo não se sabe de onde, um carro entra em contra mão no cruzamento e bate-lhe no carro. Quando vem a si sente a cabeça quente e húmida. Estende a mão, sangue. Agarra no telemóvel que lhe caiu para perto do banco e institivamente marca o numero dele.

Ela - Tou? Sérgio? Eu...

Ele - Sim já sei, vais-me foder o juizo porque tou atrasado e patati, patata. Não me melgues Cláudia!

Ela - Sérgio, ouve-me! Eu tive um acidente! Não consigo sair do carro!

Ele - Foda-se Cláudia! Inventas com cada desculpa mais foleira!Eu sei que tou atrasado pá festa! Já aí vou ter!

Ela - Não Sérgio! Estou a falar muito a sério! Não me estou a sentir nada bem, telefona para os bombeiros por favor.

Ele - Mas onde é que estás? Magoaste-te? Tás bem? Eu vou já ter contigo!

Ela - Estou no cruzamento da churrasqueira. Despacha-te. Não me estou a sentir muito bem.

Ele sai , leva o carro do companheiro. Mas há transito na ponte. " Estou sim? diga qual é a sua emergência?" "É a minha esposa, teve um acidente de viação e feriu-se!" " E em que local é que o sr. está?" "Eu estou preso na ponte! mas a minha mulher está na ..." Passado três quartos de hora chega finalmente. Os paramédicos, a policia, a equipa de desencarceramento, o cheiro entordecedor da gasolina derramada." Oh meu Deus! O carro tá desfeito" Começa a gritar.

Ele - Cláudia! onde estás Cláudia!?!

Paramédico - O sr é o marido da sra acidentada?

Ele - Sou, onde é que ela está?

Paramédico - A sua esposa foi transportada de urgência para o hospital.

Ele - Para que hospital? diga-me homem!

Paramédico - Para o Garcia de Horta

Ele não espera um segundo. Salta para dentro do carro e num ápice está no hospital.
Pergunta por ela. Dizem-lhe que está no bloco operatório. Traumatismo craniano, várias escoriações mas mais grave que tudo uma grande hemorragia interna. Pedem-lhe que aguarde na sala de espera. Aquele cheiro de urgências deixam-no zonzo. Dirige-se à saida e encosta-se à parede a fumar um cigarro. O telemóvel toca.


[Começa a chuver.]


Mariana - Tou? Sérgio? Então onde é que vocês andam? Já cá está o pessoal todo! E a Cláudia desligou o telefone porquê?

Ele - Mariana, eu estou no Garcia de Horta. A Cláudia teve um acidente grave e está no bloco operatório. Desculpa.

Mariana - O quê?! Eu vou já para aí!!

Ele - Não Mariana, deixa estar. Não é preciso, a sério.

Mariana - Mas eu não fico descansada. Até já!

Ele - Mas...

A Mariana desligou a chamada. Passado meia hora já lá estavam os amigos todos.
O médico chama.

Médico - Sr. Sérgio Mendes?

Ele - Sim, sou eu. A minha mulher sr Dr? Como é que ela está?

Médico - Por enquanto é dificil dizer. Mas pode vê-la agora durante uns minutos enquanto a transferem para o quarto.

Correu ao seu encontro. Quando a viu não a reconheceu. Apenas os olhos estavam iguais. Tudo o resto estava diferente. Beijou-a.

Ele - Meu amor! Que medo que tive de te perder! Não, não fales, poupa as tuas forças! Oh minha querida! Eu Amo-te tanto!

Ele chora. Ela chora.

Ela - E...u A...mo..te!

A máquina ao lado faz um apito continuo. O quarto enche-se de enfermeiros e médicos. Ele recolhe-se a um canto, inerte perante a cena que se passa perante os seus olhos.

Médico - Lamento muito Sr. Sérgio. A sua esposa não resistiu aos ferimentos. Ela entrou com um quadro bastante grave. Não podiamos ter feito mais nada.

Negro. Tudo há volta está negro.

[Mariana no carro três dias depois do acidente. Rádio do carro ligado nas informações sobre o trânsito]


"Trânsito condicionado na ponte 25 de Abril no sentido Lisboa-Almada, as autoridades procedem a uma busca de um individuo que saltou do tabuleiro da ponte."





[dentro de uma gaveta na casa deles]


"Desculpa. Perdoa-me.Esquece. Não leias isto. Encontramo-nos brevemente.
Hei-de beijar os teus lábios, acariciar a tua pele e dizer-te que vai ficar tudo bem. Prometo que te vou amar como mereces.
Fui estúpido demais.
Tenho tantas saudades tuas...
Amo-te!

Sérgio"



[Porque insistimos em dar por garantido quem amamos?]

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