O carro prende-se no trânsito com ele e ela lá dentro. Dirige-se cada um para o seu local de trabalho.Conversam.
Ela - Como fazemos logo? Vens ter comigo para irmos ao jantar da Mariana ou vais lá ter depois? É que eu precisava de ajuda para levar os doces que ela me pediu.
Ele - Não sei ainda. Depois mando-te uma mensagem a dizer.
Ela - Mas a uma hora decente, ok? não deixes para meia hora antes como de costume!
Ele - Tá bem pá! Não me comeces já a chatear a cabeça a esta hora da manhã!
O resto do percurso é feito em silêncio. Ela deixa-o na estação para ele apanhar o combóio e dirige-se para o escritório. Detém-se como habitual no café para engolir uma bica e comprar o jornal e segue.
O dia corre. Para ambos. Ela sai mais cedo.
[Final da tarde. Estamos em Março, os dias estão ligeiramente mais compridos. São 17h30. Uma certa frescura no ar.]
"Ainda tenho de ir fazer os doces e ele não chegou a mandar a mensagem! Este gajo é sempre a mesma treta."
Telefona-lhe:
Ela - Tou? Onde é que tu estás?
[bastante barulho do outro lado da linha]
Ele - Aaann...ainda não saí do armazém! Vou demorar uns 10 minutos, tá? Vá, adeus beijinhos!
Desliga-lhe o telefone sem avisar.
Ela - Tou?! Sérgio? Tou? Este cabrão é impossivel! Não quero saber! Desenmerda-te! Vais de autocarro para casa da Mariana que te fodes!
Ela chega a casa. Contrariada fecha-se na cozinha e prepara os doces que tinha prometido à amiga. Sai de casa duas horas depois com tudo pronto. Dele nem sinal. Telefonema, mensagem, nada!
Ele no bar em frente ao armazém conversa com o companheiro de copos enquanto aprecia a sua mini.
Ele - Épa a Sónia anda com um feitiozinho, vou-te contar! Já não há pachorra, pá! Tá-me sempre a foder o juízo com merdices que não lembram a ninguém. Parece que anda sempre com o TPM!
Companheiro - Então meu! Tu és um mole, o qu'é que queres? Deixas-a fazer e dizer tudo o que quer! Escuta bem aquilo que eu te digo: As gajas manejam-se com pulso firme, se deixas fugir um bocadinho que seja a trela, elas entram em debandada total! E depois é a merda que estás a ver!
Ele - Épa, eu só queria mesmo é que ela deixasse de me chatear. Só isso. A paciência já está mesmo a esgotar. Gostava que ela não me desse tantos problemas. Já viste? Agora anda com a mania de me controlar com o telemóvel! É incrivel! Quando namorávamos não era nada assim! Agora parece uma velha, foda-se!
Companheiro - Então se já tás assim nesse estado porque é que não a largas de vez? Pede o divórcio pá! Livra-te da gaja!
Ele - Não. O problema maior é que nem isso consigo fazer. É fodido um gajo ficar assim entre a espada e a parede.
[Está já bastante escuro. Estamos por volta das 19h30/20h00.]
Entretanto do outro lado do rio Ela acelera até casa da amiga. De repento, vindo não se sabe de onde, um carro entra em contra mão no cruzamento e bate-lhe no carro. Quando vem a si sente a cabeça quente e húmida. Estende a mão, sangue. Agarra no telemóvel que lhe caiu para perto do banco e institivamente marca o numero dele.
Ela - Tou? Sérgio? Eu...
Ele - Sim já sei, vais-me foder o juizo porque tou atrasado e patati, patata. Não me melgues Cláudia!
Ela - Sérgio, ouve-me! Eu tive um acidente! Não consigo sair do carro!
Ele - Foda-se Cláudia! Inventas com cada desculpa mais foleira!Eu sei que tou atrasado pá festa! Já aí vou ter!
Ela - Não Sérgio! Estou a falar muito a sério! Não me estou a sentir nada bem, telefona para os bombeiros por favor.
Ele - Mas onde é que estás? Magoaste-te? Tás bem? Eu vou já ter contigo!
Ela - Estou no cruzamento da churrasqueira. Despacha-te. Não me estou a sentir muito bem.
Ele sai , leva o carro do companheiro. Mas há transito na ponte. " Estou sim? diga qual é a sua emergência?" "É a minha esposa, teve um acidente de viação e feriu-se!" " E em que local é que o sr. está?" "Eu estou preso na ponte! mas a minha mulher está na ..." Passado três quartos de hora chega finalmente. Os paramédicos, a policia, a equipa de desencarceramento, o cheiro entordecedor da gasolina derramada." Oh meu Deus! O carro tá desfeito" Começa a gritar.
Ele - Cláudia! onde estás Cláudia!?!
Paramédico - O sr é o marido da sra acidentada?
Ele - Sou, onde é que ela está?
Paramédico - A sua esposa foi transportada de urgência para o hospital.
Ele - Para que hospital? diga-me homem!
Paramédico - Para o Garcia de Horta
Ele não espera um segundo. Salta para dentro do carro e num ápice está no hospital.
Pergunta por ela. Dizem-lhe que está no bloco operatório. Traumatismo craniano, várias escoriações mas mais grave que tudo uma grande hemorragia interna. Pedem-lhe que aguarde na sala de espera. Aquele cheiro de urgências deixam-no zonzo. Dirige-se à saida e encosta-se à parede a fumar um cigarro. O telemóvel toca.
[Começa a chuver.]
Mariana - Tou? Sérgio? Então onde é que vocês andam? Já cá está o pessoal todo! E a Cláudia desligou o telefone porquê?
Ele - Mariana, eu estou no Garcia de Horta. A Cláudia teve um acidente grave e está no bloco operatório. Desculpa.
Mariana - O quê?! Eu vou já para aí!!
Ele - Não Mariana, deixa estar. Não é preciso, a sério.
Mariana - Mas eu não fico descansada. Até já!
Ele - Mas...
A Mariana desligou a chamada. Passado meia hora já lá estavam os amigos todos.
O médico chama.
Médico - Sr. Sérgio Mendes?
Ele - Sim, sou eu. A minha mulher sr Dr? Como é que ela está?
Médico - Por enquanto é dificil dizer. Mas pode vê-la agora durante uns minutos enquanto a transferem para o quarto.
Correu ao seu encontro. Quando a viu não a reconheceu. Apenas os olhos estavam iguais. Tudo o resto estava diferente. Beijou-a.
Ele - Meu amor! Que medo que tive de te perder! Não, não fales, poupa as tuas forças! Oh minha querida! Eu Amo-te tanto!
Ele chora. Ela chora.
Ela - E...u A...mo..te!
A máquina ao lado faz um apito continuo. O quarto enche-se de enfermeiros e médicos. Ele recolhe-se a um canto, inerte perante a cena que se passa perante os seus olhos.
Médico - Lamento muito Sr. Sérgio. A sua esposa não resistiu aos ferimentos. Ela entrou com um quadro bastante grave. Não podiamos ter feito mais nada.
Negro. Tudo há volta está negro.
[Mariana no carro três dias depois do acidente. Rádio do carro ligado nas informações sobre o trânsito]
"Trânsito condicionado na ponte 25 de Abril no sentido Lisboa-Almada, as autoridades procedem a uma busca de um individuo que saltou do tabuleiro da ponte."
[dentro de uma gaveta na casa deles]
"Desculpa. Perdoa-me.Esquece. Não leias isto. Encontramo-nos brevemente.
Hei-de beijar os teus lábios, acariciar a tua pele e dizer-te que vai ficar tudo bem. Prometo que te vou amar como mereces.
Fui estúpido demais.
Tenho tantas saudades tuas...
Amo-te!
Sérgio"
[Porque insistimos em dar por garantido quem amamos?]
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